Há movimentos silenciosos no Direito que, quando percebidos, mudam tudo. A autocuratela se encaixa nesse tipo de revolução discreta: uma forma de planejamento da própria vida civil que, só agora, ganhou atenção nacional com o Provimento 206, de 6 de outubro de 2025, da Corregedoria Nacional de Justiça.
A norma obriga juiz(a)s, em processos de interdição, a consultarem a CENSEC para verificar a existência de escritura de autocuratela ou de diretivas de curatela. Parece simples. Não é. Esse pequeno gesto administrativo altera o eixo da curatela como tradicionalmente se entendeu e reforça uma linha mestra da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência): A autonomia é o ponto de partida, mesmo quando alguém precisa de apoio.
1. Antes de tudo: o que é curatela e como ela evoluiu?
Durante séculos, a curatela foi concebida como uma substituição completa da vontade da pessoa julgada incapaz. O curador agia “em nome de”, muitas vezes sem que a própria pessoa tivesse qualquer espaço para manifestar escolhas, preferências ou prioridades.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei Federal nº 13.146/2015) virou essa chave. A curatela deixou de ser um “apagamento civil” e passou a ser uma medida excepcional, proporcional e necessária, restrita a atos patrimoniais e negociais. A regra não é mais a substituição da vontade, mas o apoio à tomada de decisão.
Esse giro conceitual abriu espaço para algo mais avançado: se a pessoa tem capacidade suficiente para planejar no presente, por que não permitir que ela defina, com antecedência, quem cuidará de seus interesses no futuro, caso precise?
É aqui que a autocuratela entra.
2. Autocuratela: o que é, de onde vem, para que serve
A autocuratela é uma manifestação formal, por escritura pública, na qual uma pessoa define quem deverá ser seu curador (ou que regras deverão orientar a curatela) caso, um dia, ela venha a ser interditada.
Em termos filosóficos, trata-se de preservar a coerência biográfica da pessoa. Em termos jurídicos, é planejamento sucessório não de bens, mas de dignidade.
Alguns Estados saíram na frente e disciplinaram, em provimentos estaduais, a possibilidade de formalizar essa vontade por meio de escritura pública. Ou seja, na prática, a escritura de autocuratela já existia, mas lhe faltava o reconhecimento nacional de que ela deva ser, obrigatoriamente, levada em conta no processo judicial. Agora não falta mais.
3. O que muda com o Provimento 206/2025
Os principais pontos:
O juiz deve consultar a CENSEC para verificar se existe escritura de autocuratela ou diretiva antecipada de curatela.
O resultado da consulta deve ser juntado aos autos da interdição.
A certidão de inteiro teor só pode ser obtida pelo próprio declarante ou por ordem judicial.
Isso garante duas coisas simultâneas:
(a) a vontade do indivíduo entra no processo; e
(b) sua privacidade é protegida.
O CNJ aplicou a mesma lógica de reserva que já vale para testamentos. Afinal, a autocuratela pode conter informações íntimas, como doenças progressivas, histórico de saúde mental ou preocupações familiares delicadas.
4. O impacto prático: tabeliães, magistrados, famílias
Para quem atua no extrajudicial, o Provimento 206 cria um cenário muito claro:
– a autocuratela passa a ser parte do arsenal de planejamento jurídico de vida;
– a escritura deve ser orientada com cuidado, porque é um documento que o juiz efetivamente levará em conta;
– o registro na CENSEC deixa de ser só formalismo e passa a ser mecanismo de efetivação da autonomia.
Para magistrados, o provimento muda o fluxo processual. Agora existe um “dever de saber”: o processo não poderá ignorar a vontade pretérita do interditando.
E para famílias, o sistema tende a reduzir disputas. É muito mais difícil contestar a escolha do próprio interessado do que discutir preferências entre irmãos, cônjuges ou parentes próximos.
5. Dilemas e críticas: o que vem pela frente?
Nenhuma mudança jurídica vem sem tensões. Alguns debates começam a surgir:
– E se a vontade passada divergir do melhor interesse presente?
A LBI privilegia a vontade e preferência, mas o juiz não está proibido de ponderar situações de risco.– E se a família questionar a lucidez da escritura?
Mesmo sendo pública, a escritura não substitui eventual perícia. Mas tem peso significativo.– E se a pessoa tiver feito duas escrituras ao longo da vida?
Valerá a mais recente — mas deve constar todo o histórico, para transparência judicial.– Como garantir que a escolha do curador não será instrumentalizada?
Boa fé é pressuposto, mas cabe ao tabelião orientar, advertir e registrar.
Essas tensões não diminuem o valor do novo provimento. Elas apenas mostram que o Direito está se ajustando ao futuro: viver mais, viver com apoio, viver com autonomia.
6. Conclusão: o futuro da autonomia começa agora
O Provimento 206/2025 não cria a autocuratela — ele legitima sua força jurídica. Ele diz ao país que a vontade do indivíduo importa, inclusive (e talvez principalmente) quando falamos de momentos de vulnerabilidade.
Planejar a própria curatela não é paranoia: É maturidade civil. E agora, é também uma ferramenta reconhecida nacionalmente.





